20 de agosto de 2013

Bibliófilos e suas bibliotecas

Essa semana, publiquei no Youtube um vídeo com comentários sobre o livro "Fantasmas na Biblioteca", de Jacques Bonnet. Bonnet é francês, editor, tradutor e... bibliófilo - um colecionador de livros. Na obra, o autor fala sobre como é viver entre (muitos) livros, como é o processo de escolha, organização e leitura das diferentes obras que tem em casa.



Depois disso, fiquei pensando... como são as bibliotecas dos bibliófilos? Afinal, se já temos problemas nas nossas casas com nossos livros, imagina eles (com seus 20, 30, 40 mil ou mais). Abaixo, algumas imagens:

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O próprio Jacques Bonnet, que comenta no livro que precisou espalhar seus cerca de 20 mil volumes em diversos cômodos da casa. 


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Alberto Manguel, que também tem vários livros publicados sobre o tema (como o "Uma noite na biblioteca" ou "Uma história da leitura").

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José Mindlin, um bibliófilo brasileiro, chegou a ter 45 mil volumes na sua biblioteca. Faleceu em 2010.

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Umberto Eco é um dos autores que defendem que as grandes bibliotecas não são lidas por completo - e nem são feitas com esse objetivo. A intenção é ter tudo por perto, disponível, para quando quiser ler.

18 de agosto de 2013

Mensagem - Fernando Pessoa



Fernando Pessoa é um dos grandes nomes da literatura. Sua inventividade e técnica poética fazem dele um dos poetas mais conhecidos e admirados da língua portuguesa. É um dos preferidos de muita gente, eu inclusive. E tenho um atração especial por Mensagem (1934), o único livro em português que ele publicou em vida (e que ficou em 2º lugar(‼) no prêmio Antero Quental daquele ano (Romaria, de Vasco Reis, foi o primeiro)).

Fernando Pessoa quase sempre nos oferece múltiplas camadas de leitura e quanto mais se sabe da tradição portuguesa e do contexto da época em que foi escrito (entre 1914-1934), mais deliciosa se torna essa obra, riquíssima de recursos poéticos. Então vou começar mostrando um pouco da estrutura da obra, muito ligada aos símbolos de Portugal, e comentando brevemente as chamadas Conferências Democrática do Cassino, ocorridas em 1870.




PARTE
SUBDIVISÃO 
POEMAS
1. Brasão


















I. Os Campos 

Os castelos 
O das quinas 
II. Os Castelos 







1) Ulisses 
2) Viriato
3) O conde D. Henrique
4) D. Tareja
5) D. Afonso Henriques 
6) D. Dinis 
7 a) D. João, o primeiro
7 b) D. Filipa de Lencastre
III. As Quinas 




D. Duarte, rei de Portugal
D. Fernando, infante de Portugal
D. Pedro, regente de Portugal
D. João, infante de Portugal
D. Sebastião, rei de Portugal
IV. A Coroa
Nunálvares Pereira 

V. O Timbre


A cabeça do grifo / O infante D. Henrique
Uma asa do grifo / D. João, o segundo
A outra asa do grifo / Afonso de Albuquerque
2. Mar Português























O infante
Horizonte
Padrão
O monstrengo
Epitáfio de Bartolomeu Dias 
Os colombos 
Ocidente
Fernão de Magalhães 
Ascensão de Vasco da Gama
Mar Português
A última nau 
Prece
3. O Encoberto












I. Os Símbolos 





D. Sebastião
O Quinto Império
O Desejado
As Ilhas Afortunadas 
O Encoberto
II. Os Avisos 


O Bandarra
Antônio Vieira
Terceiro
III. Os Tempos 





Noite
Tormenta
Calma
Antemanhã 
Nevoeiro


Como mostram os títulos das partes, a estrutura da obra reflete os símbolos e as personagens (históricas e mitológicas) de Portugal numa sequência cronológica, tendo em Os Lusíadas uma obra com a qual evidentemente dialoga.

Das citadas Conferências Democrática do Cassino saiu o diagnóstico que Portugal se tornara um país decadente. Potência mundial dos séculos XIV a XVI, o país perdeu sua importância e ficou relegado à margem da ordem mundial. Intelectuais e escritores portugueses conviviam com a necessidade de entender as razões de o porquê dessa decadência e do que fazer para novamente ser protagonista da história.

Mensagem é a resposta de Pessoa, que, numa possível leitura, nos indica que Portugal não tinha que lamentar as perdas materiais que sofreu (como a independência das colônias conquistadas), mas a perda da sede, da vontade, do espírito que havia levado o país à vanguarda marítima, comercial e científica de outrora.

E Fernando Pessoa faz isso mostrando como o povo português teve muitos feitos e heróis, realizando aventuras de proporções épicas tendo como um dos pontos centrais o sonho. E que é o declínio desse sonho que deixou Portugal imerso no grande nevoeiro em que se encontrava no início do século XX.

O início da obra é por si só magistral, mostrando de cara toda a força da imaginação e da construção de imagens do poeta. Com versos que fazem parte de nossa cultura e imaginário, Pessoa visualiza a Europa como um corpo feminino. Reclinada sobre um de seus cotovelos (a Inglaterra) tem seu outro recuado, a Itália – o rosto, voltado para vastidão do Oceano à frente, é Portugal.

I. OS CAMPOS

PRIMEIRO / OS CASTELOS

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.


SEGUNDO / O DAS QUINAS

Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

Os Lusíadas já traziam Portugal como “cabeça da Europa toda” (e essa intertextualidade com Camões, de suporte e superação, está sempre presente). Mas lá era uma vontade divina, de que os portugueses vencessem os mouros (a conquista de cada castelo é representado no escudo português), aqui uma condição e uma missão mais abrangente, que aguarda o que virá, mas também vê além, quase que a guiar e liderar toda a Europa.

Na simbologia heráldica, as quinas representam as chagas de Cristo e o dinheiro com que foi vendido por Judas, evidenciando a missão portuguesa de lutar contra os infiéis. No segundo poema, as quinas podem ser entendidas como o sofrimento, o preço pago pela nação portuguesa para construir sua história. Nele estão contidas todos os argumentos da obra, da mensagem que ele quer deixar aos portugueses: a glória futura, a desgraça como sinal de eleição, a necessidade de se libertar da materialidade e a identificação com Cristo (definido como tal pelo sacrifício).

Assim se dividem os poemas dessa primeira parte, remetendo ao brasão de Portugal. Trata do nascimento e da fundação da nação, com as grandes figuras da história de Portugal, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalenses, passando por sua esposa, Dona Tareja, e seu filho, primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques, até o infante Dom Henrique (1394-1460), fundador da Escola de Sagres e grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e Afonso de Albuquerque (1462-1515), dominador português do Oriente. Incluindo Ulisses que, na tradição mitológica presente também nOs Lusíadas, seria um dos fundadores de Lisboa


Mar português, a segunda parte, apresentadas as grandes navegações portuguesas, que levou o país a seu lugar de destaque. Padrão evidencia a amplitude dessa missão e aventura portuguesa:

III. PADRÃO

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.


O poema mais conhecido de toda a obra, Mar Português, também remete aOs Lusíadas, no episódio da “despedida das naus em Belém”. São as lágrimas de Portugal, o salgado do mar. Aqui já se vê o eco do "compra-se a glória com desgraça". A referência final ao Cabo Bojador, na costa do Marrocos, traz o mito existência de monstros marinhos, responsáveis pelo desaparecimento de inúmeras embarcações que tentaram ultrapassá-lo. O feito de superá-lo, como não podia deixar de ser, foi de um português, Gil Eanes em 1434. O fechamento é de mais uma belíssima imagem e sonoridade, com sua forte mensagem – embora tantos perigos, o reflexo do céu está no mar. Nisso, ao contrário dOs Lusíadas, as navegações não são um fim em si mesmo, não são pela sua materialidade, mas pelo seu caráter espiritual ("em naus que são construídas daquilo que os sonhos são feitos") que podem levar Portugal ao seu lugar de destaque.

X. MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Na terceira parte, o Encoberto, a figura mística de Dom Sebastião e as inúmeras profecias ligadas a ele. Dom Sebastião, rei de Portugal, teve a frota dizimada em ataque aos mouros em 1578. Entre outros, Bandarra e Antônio Vieira preveem o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre o mundo. A visão messiânica de São Sebastião carrega tudo que o jovem rei representou: o sonho de grandeza, da expansão do cristianismo e das conquistas ultramarinas. Os poemas parecem justamente trazer o clima de magia em torno de presságios e adivinhações, daí o tom enigmático e as indagações do que está por vir. Quando está por vir? O último verso do último poema responde: É a hora!


QUINTO / NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer-
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

(Para quem quiser mais, José Carrero faz - com muito mais propriedade - uma análise extensa, e por vezes diferente, de Mensagem nesse link

9 de agosto de 2013

Sentimento do Mundo - Carlos Drummond de Andrade


“Tenho apenas duas mãos/e o sentimento do mundo”. Essa passagem antológica abre o terceiro livro de Drummond, Sentimento do Mundo, lançado em 1940. Imerso em sua época, as ditaduras, o nazismo e a segunda guerra fazem parte do eixo temático do livro, que oscila entre cidade e interior, atualidade e memórias e o indivíduo e o mundo – tema este presente desde o primeiro livro de Drummond, com sua também abertura antológica, o Poema de Sete Faces.

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

De certo modo, a divisão de estrofes de Drummond sempre foi a chave para ler seus poemas. Os versos livres, as rimas ausentes e a linguagem coloquial trazem consigo profundo lirismo e alguma ironia, quase sempre estabelecendo a relação do eu/mundo interior com mundo exterior, carregando todos os seus fantasmas. Nesse sentido, o poema mais conhecido talvez seja a Confidênciado Itabirano. E parar lutar contra o que hoje é fotografia, mas ainda dói, vem a busca de um vínculo com o que está fora do eu. Em Poema da Necessidade isso é feito pela repetição do “é preciso”, mas concluindo pelo fim do mundo. Entre todas as possibilidades que a linguagem permite, criar mil mundos novos, o desfecho do poeta é o fim de tudo, de tudo que aprisiona e oprime (embora, de certa forma, anuncie um mundo novo em O Operário do Mar). As preocupações, inquietações e imposições da vida moderna – repetidas constantemente, não poderiam mesmo ter outro fim.

Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
É preciso comprar um rádio,
É preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
É preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.

Assim, vemos o homem sempre carregando seu passado: a família, a cidade natal, a formação moral, o medo e a angústia, sempre o medo e a angústia. Em Sentimento do Mundo isso se depara com a política ditatorial, a luta pelo poder, a ganância, a corrupção, a diferença social, a imposição comportamental e a violência. Inocentes do Leblon não poderia ser mais atual com seu retrato dos que querem ignorar. Mas se a poesia cintila com a possibilidade de servir como meio de libertação, inclusive com função de participação social, não é otimista o desfecho que ela traz. Reviver os fantasmas e raciocinar a partir do medo e do autoritarismo nos faz nos compreendermos melhor, mas não resolve o problema. É negro o amanhecer.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer.

Esse amanhecer
mais noite que a noite.

3 de agosto de 2013

Rilke Shake - Angélica Freitas



Angélica Freitas já chegou ao público e à academia – feito raríssimo para poetas contemporâneos, especialmente tão novos quanto ela, que está apenas em seu segundo livro de poesia.

Rilke shake, sua obra de estreia, mostra, desde o título, uma temática típica de nossos tempos, o diálogo entre o erudito e o popular, a tradição e sua transformação – a mistura milk shake que fazemos da cultura popular (e de nós próprios) com os grandes nomes, como o de Rainer Maria Rilke.

Angélica ignora a métrica, seu ritmo é “de ouvido” e podia insistir mais nas rimas soantes despadronizadas (que faz muito bem, como em “Entro na livraria do bobo” e “Rilke shake”), mas a força de seus temas, as imagens que constrói e o uso narrativo que faz da poesia superam em muito eventuais defeitos, naturais de uma obra de estreia.


ENTRO NA livraria do bobo
não tenho dinheiro
e tampouco tenho talento para o crime.

desfilam ante meus olhos
títulos maravilhosos
moribundos de tanto estar
nas prateleiras.

roube-nos, dizem eles,
não aguentamos mais ficar aqui
na livraria dos bobos.

quem acreditaria
nesta versão dos fatos?
ajudem-me, maragatos
nesta hora afanérrima
de uma libertadora paupérrima
de livros.

retumba meu coração, retumba
mais que a bateria do salgueiro
treme o corpo por inteiro
e as mãos já suam em bicas.

ganho a rua, as mãos vazias
e os livros gritam: maricas.


O erudito e o popular está presente em vários momentos do livro, no léxico e em referências explícitas (Rilke, Gertrude Stein, Ezra Pound…) e implícitas (como, em destaque no poema anterior, a lembrança do “retesa os músculos, retesa” do belíssimo soneto de Cruz e Souza) mescladas com objetos (como a bateria do salgueiro) e vocábulos populares. Outra marca é a mescla de idiomas, também recorrente entre as novas gerações de poetas, talvez mais acostumados em se expressar em diversos idiomas. Tudo bem que seu “plano poético” nem sempre funcione, soando às vezes é óbvio, sacal e não é mais que pastiche, mas não se pode negar que Angélica Freitas tem objetivos ao escrever e trabalha sua escrita, com resultados que justificam sua posição como uma das grandes promessas de uma nova geração de poetas. O que pode ser percebido no poema título do livro e, com mais força ainda, em sua segunda obra Um útero é do tamanho de um punho (comentado nesse vídeo aqui).


Rilke shake

salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe


Com versos curtos, repletos de ironias, humor (“entre os ringues polifônicos e a queda da marquise/ morreu ontem executada a poor elise”), traços de pertencimento e ruptura (reflexo, talvez, do eterno problema presente de identidade) e a questão de gênero que seria tão bem explorada na próxima obra, que tem seu ápice nas imagens de dois poemas seguidos “sashimi” e “sereia a sério”. No primeiro, a tarefa, "ocupação tão masculina/sushiman" de "retalhar/ melhor o peixe" será contraposta, do outro lado da lâmina, pela sereia símbolo de mulher que “"pisa em facas quando usa os pés":

Sereia a sério

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão


Se poesia é para, antes, falar com e alegrar os corações humanos, Angélica Freitas nos oferece, já de cara, uma bela conversa e deleite.

NÃO adianta
chegar na porta
e ordenar
abra
öffnen
open
é preciso
girar a chave

e mais
é preciso saber
qual chave

ou então
esbarrar na dureza
de certos materiais

mogno pinho
cedro ou lâmina
de qualquer madeira

conhecer a chave
ou intuir para que
lado gira

tantos têm
tão pouca paciência

29 de julho de 2013

Building Stories

Na sexta (19 de julho) o “Building Stories”, de Chris Ware, ganhou quatro categorias do prêmio Will Eisner, realizado na Comic-Con. As quatro categorias foram Melhor Álbum Gráfico Inédito, Melhor Escritor/Ilustrador, Melhor Colorista e Melhor Letrista. (Quer ver todo mundo que ganhou? Olha aqui!)




Li o livro em abril, depois de um tempo tentanto comprar. E wow, um dos melhores livros que li esse ano até agora. 


O livro na realidade é uma caixa com vários caderninhos, livrinhos, tirinhas e até jornais. Não existe um começo ou um fim - é só ir pegando eles e lendo. Com isso, a construção dos personagens é lenta, e um pouco confusa no comecinho - mas incrível depois. Por não ter uma ordem específica, cada leitor vai ter um processo e uma sequência diferentes de apresentação de personagens. Nesse sentido, a cronologia assume um papel curioso - o leitor acaba entrando na vida de alguém em um ponto aleatório, e descobrindo aos poucos o que veio antes ou depois disso. 


É importante falar que o livro é basicamente sobre a vida de pessoas e seus sentimentos (principalmente solidão), que podem ser abordados à exaustão por vezes. É bonito, no fim acaba sendo uma crônica uma vida inteira. 
Para mim, um dos pedaços mais legais é um que mostra um prédio pensando. Ele dá vida à construção - e foi um jeito ótimo de provocar uma reflexão sobre as pessoas que moram ali. Outro pedaço legal é a história de um casal de abelhas (fofo, fofo).


O livro é terrivelmente humano, o que pode acabar sendo cruel também. É curioso ver o que acontece depois que o sonho aparentemente se concretiza.
Uma das personagens, que é um pouco como a personagem principal, parece sempre frustrada e parece com uma alma inquieta, esperando mais mas sem saber o que. Ela vai indo com a vida, sem fazer nada muito grande para mudar as coisas, mesmo quando não se sente confortável com o que está na frente dela. Isso pode parecer apatia, mas em outros momentos ela parece bastante corajosa por se jogar em uma nova situação, sem medo de não dar certo. Ela ainda tem uma consciência humana muito forte, uma espécie de sensação de pertencimento ao mundo, de conexão entre as coisas.


Jimmy Corrigan, outro livro do mesmo autor, foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Ainda não vi nada sobre uma previsão de uma tradução desse - é inclusive uma obra complexa para ser traduzida.








27 de julho de 2013

Poemas - Vladimir Maiakóvski



Maiakóvski é meu poeta preferido. Digo isso com certa culpa literária/patriótica/linguística, mas a culpa não é suficiente para tirar-lhe de seu lugar para mim. Um dia aprenderei russo e será, primeiro, para ler Maiakóvski no original. Um de seus poemas mais famosos é uma resposta ao bilhete de suicídio (belíssimo),  do também poeta russo (e desafeto) Serguei Iessiênin, que se matou enforcado e de pulsos cortados em seu quarto no hotel Inglaterra.

A Serguei Iessiênin - Vladimir Maiakovski (poema completo)

Você partiu,
como se diz,
para o outro mundo.    
Vácuo...
Você sobe,
entremeado às estrelas.
Nem álcool,
nem dinheiro.
Sóbrio.
Vôo sem fundo.
Não Iesiênin,
não posso
fazer troça,
Na boca
uma lasca amarga
– não a mofa.
Olho –
            sangue nas mãos frouxas,
você sacode
                o invólucro
                        dos ossos
Pare,
       basta!
            Você perdeu o senso?
Deixar
            que a cal
                        mortal
                                   lhe cubra o rosto?
Você, com todo esse talento
para o impossível;
hábil
como poucos.
Por quê?
Para quê?
Perplexidade.
– É o vinho!
– a crítica esbraveja.
Tese:
refratário à sociedade.
Corolário:
muito vinho e cerveja.

Sim,
se você trocasse
a boêmia
 pela classe.
A classe agiria em você.
e  lhe daria um norte. 
E a classe,
por acaso,
mata a sede com xarope?
[…]
Remédio?
            Para mim,
                        despautério:
mais cedo ainda
                        você estaria nessa corda.
Melhor
morrer de vodka
que de tédio!
[…]
Talvez,
se houvesse tinta
no “Inglaterra”
você
não cortaria
os pulsos.
Os plagiários felizes
pedem: bis!
Já todo
um pelotão
 em auto-execução.
Para que
aumentar
o rol dos suicidas?
Antes
aumentar
a produção de tinta!
[…]
Por enquanto
há escória
de sobra.
O tempo é escasso –
mãos à obra!
Primeiro
é preciso
transformar a vida,
para cantá-la –
em seguida.
Os tempos estão duros
para o artista?
Mas,
 dizei-me,
 anêmicos e anões,
os grandes,
 onde,
em que ocasião,
escolheram
uma estrada
batida?
[…]
Para o júbilo
o planeta
está imaturo,
É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Nesta vida,
morrer não é difícil,
O difícil
é a vida e seu ofício.

           
O descobri aos 18 anos quando, estagiário de Física, conversei com o estagiário de Língua Portuguesa que carregava um livro envolto sempre num plástico. Me emprestou. Três dias depois me pediu de volta. Já tinha lido, relido e trelido, mas só devolvi quando o meu chegou da compra pela Internet. Desde então o li mais de 50 vezes. Bem mais.

Um dia o perdi, comprei outro, achei o anterior. O novo ficou no plástico durante anos – seguro na estante caso acontecesse algo com o primeiro. Piada entre amigos só saiu de minha vista quando o dei de presente para minha namorada (com nova piada de amigos), hoje minha esposa (e o livro voltou aqui para casa!).

O vigor, o destemor, a dramaticidade, a invenção e o engajamento crítico e político, a literatura/vida revolucionária, a sonoridade e, sobretudo, as imagens impressionam. Muito. Tudo em Maiakóvski é grandioso, é duradouro, é alento e incômodo. Poesia como forma de produção, dificílima, complexíssima, mas forma de produção.


A FLAUTA-VÉRTEBRA (prólogo)

A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.



Num primeiro momento, a temática é evidente par atrair os jovens. Com o tempo, o fervor passa, a inocência passa e até a crença no futuro arrefece. A poesia de Brecht vai me parecendo mais ingênua, mas não a de Maiakóvski. O russo é capaz de tocar na flauta das próprias vértebras, bradar a plenos pulmões pela revolução e pela humanidade, cantar pela vida e se suicidar. Não fizessem mais nada além de traduzir parte da obra de Maiakóvski e Boris Schnaiderman e os irmãos Campos já teriam seus nomes na história dos amantes de literatura.

Comecei a escrever “a sério” por querer fazer parte do que Maiakóvski fazia: rimas eco, assonâncias e aliterações, pausas e ritmos, disposição dos versos e, principalmente, grandiosidade de imagens. A maioria pastiches sem futuro que se perderam entre rascunhos, mas ainda sei que quase sempre que começo um poema, é ele quem eu queria ser.


Cartaz de Alexandr Rodchenko


A PLENOS PULMÕES 
(Primeira Introdução ao Poema)

Caros
          camaradas
                      futuros!
Revolvendo
        a merda fóssil
                        de agora,
perscrutando
estes dias escuros,
talvez
              perguntareis
                            por mim. Ora,
[…]
A mim cabe falar
                de mim
                      de minha era.
Eu – incinerador,
                 eu – sanitarista,
a revolução
                    me convoca e me alista.
[…]
Triste honra,
                 se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
           escarra a tuberculose;
putas e rufiões
                 numa ronda de sífilis.
Também a mim
          a propaganda
                        cansa,
é tão fácil
        alinhavar
                romanças, –
mas eu
          me dominava
                  entretanto
e pisava
            a garganta do meu canto.
[…]
Meu verso chegará,
                não como a seta
lírico-amável,
              que persegue a caça.
Nem como
          ao numismata
               a moeda gasta,
nem como a luz
                   das estrelas decrépitas.
Meu verso
          com labor
               rompe a mole dos anos,
e assoma
    a olho nu,
                 palpável,
                      bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
                por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
               versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
                          como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
                mas terrível.
[…]
Desdobro minhas páginas
          – tropas em parada,
e passo em revista
                          o front das palavras.
Estrofes estacam
             chumbo-severas,
prontas para o triunfo
          ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
               as maiúsculas
           abertas.
Ei-la,
    a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
                      alerta para a luta.
Rimas em riste,
      sofreando o entusiasmo,
eriça
        suas lanças agudas.
E todo
      este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
não batido,
eu vos dôo,
                proletários do planeta,
cada folha
            até a última letra.
[…]
Morre,
          meu verso,
                    como um soldado
anônimo
na lufada do assalto.
Cuspo
      sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
          sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória, –
                    entre nós todos, –
o comum monumento:
o socialismo,
forjado
             na refrega
                            e no fogo.
[…]
Camarada vida,
            vamos,
                para diante,
galopemos
      pelo qüinqüênio afora.
Os versos
      para mim
              não deram rublos,
nem mobílias               
de madeiras caras.
Uma camisa
      lavada e clara,
                    e basta, –
                              para mim é tudo.
Ao Comitê Central
                  do futuro
                                   ofuscante,
sobre a malta
                  dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
              os cem tomos

                    dos meus livros militantes.