11 de abril de 2014

21 de fevereiro de 2014

A arte de guardar livros

Nossas estantes não podem negar - muitos de nós leitores somos também colecionadores de livros. E, apesar de ser um dos grandes prazeres da nossa vida (da minha pelo menos é), nem sempre é fácil fazer isso.

A primeira questão é, claro, dinheiro. Mas acho esse um assunto chato e, a não ser que você seja milionário, ele é um problema para quase tudo na vida, não só para livros. Por isso, ele está sendo cordialmente ignorado nesse texto.

Sobre o que eu realmente quero falar é espaço - ou sobre como temos que ser flexíveis na hora de guardar todos os livros que temos (e queremos ter).  

Shakespeare and Company - livraria que domina a arte de guardar muitos livros em pouco espaço (daqui).


A situação é bem mais simples quando começamos. Ainda somos crianças ou adolescentes e temos uns 30 livros no quarto. Já começamos a achar a pilha grande, mas provavelmente temos alguns espaços entupidos de bichinhos de pelúcia prontos para dar espaço para mais papel. É nessa época que sonhamos com as paredes feitas de livros.

Então a coleção realmente começa (fato que provavelmente coincide com seu primeiro emprego) e o espaço que tínhamos - e o que não tínhamos mas conseguimos criar - começa a ficar cheio. Nessa época da vida do leitor que começam a aparecer pilhas em lugares improváveis do quarto - dentro do armário, dividindo espaço com roupas, em cima de uma estante bem perto do teto, em cima da televisão (sim, sou na época que nem toda TV era fininha e dava para empilhar coisas em cima delas) e nos criados mudos - melhor ainda era quando a pilha se tornava um criado mudo.

Eventualmente podemos ter até uma aflição por causa disso e pensamentos do tipo “isso não é jeito digno de guardar livros”, mas é claro que preferimos permanecer com os livros. E, outro fato óbvio - preferimos gastar nosso dinheiro com mais livros ao invés de comprar uma estante bonita, dessas de revista.

Esse fato mudou um pouco para mim quando saí da casa dos meus pais e mandei fazer uma estante bem do jeito que eu queria. E preciso dizer que me decepcionei um pouco a primeira vez que coloquei meus livros nela. Ela ficou linda, não é isso. Mas eu tinha a vã esperança que aquele móvel do tamanho de uma parede fosse capaz de sustentar a coleção por mais uns cinco anos - e ela ficou quase cheia de cara. No fim, a estante sustentou só mais alguns meses antes de ficar abarrotada. Minha nova teoria é que só sabemos o volume real dos nossos livros quando temos que subir quatro lances de escadas com eles só para descobrir que não vai sobrar espaço para os próximos.

Mas claro, sempre temos nossos jeitos de melhorar a situação: deitar livros na horizontal em cima das fileiras de livros ou até criar as fileiras duplas - maneira triste porem eficiente de dobrar a capacidade da sua estante ou prateleira. E uma das vantagens de ter sua própria casa é expandir o território ocupado pela coleção - minha mãe pelo menos não deixava as minhas pilhas de livro ficarem em qualquer cômodo que não fosse o meu próprio. Agora estão no cômodo denominado “biblioteca”, no quarto e já tenho planos para o sala.

A única coisa que me preocupa são as próximas etapas da expensão - só restarão livres o banheiro, a cozinha, o porta malas do carro e o lado de fora da janela.

14 de fevereiro de 2014

Literatura escrita por mulheres

Muito está sendo dito sobre como 2014 será um ano para se ler livros escritos por mulheres (caso você não tenha acompanhado ainda, recomendo as seguintes leituras: o tumblr leia mulheres 2014; um post aqui e outro aqui da Juliana Brina, d’o Pintassilgo, um texto do Arthur no Posfácio). 

Ilustra do incrível Thoca Maer, daqui.



Gosto de ideia porque sempre gostei de ler de maneira variada: sempre tento sair da minha zona de conforto como leitora e me provocar a ler coisas novas ou que não costumo ler. E faz uns quatro anos que percebi pela primeira vez que a maioria dos livros que eu tinha era escrito por homens e comecei a tentar mudar isso. Acho que ainda hoje minha estante é de maioria masculina (quem sabe eu não conte qualquer dia desses?), mas a diferença está menor.


Para dar uma humilde contribuição ao projeto, listo abaixo textos e vídeos em que falo sobre livros escritos por mulheres:


Resenhas
Hibisco Roxo - Chimamanda Adichie
Copacabana Dreams - Natércia Pontes  
Quando ia me esquecendo de você - Maria Silvia Camargo 
Je Nathanaël - Nathanaël 
Para quando formos melhores - Celeste Antunes


Vídeos

Are you my mother? - Alison Bechdel
Guadalupe - Angélica Freitas - e A Máquina de Goldberg - Vanessa Barbara
Por favor, cuide da mamãe - Kyung-Sook Shin
Dreaming in French - Alice Kaplan
It chooses you - Miranda July
Sua voz dentro de mim - Emma Forrest
Três mulheres fortes - Marie NDiaye
Fera d’Alma - Herta Müller
Filhos do Jacarandá - Sahar Delijani
Esquilos de Pavlov - Laura Erber
Tipos de Perturbação - Lydia Davis
The Cuckoo’s Calling - J.K.Rowling
Eu sou Malala - Malala Yousafsai
Noites de Alface - Vanessa Barbara
Vida Querida - Alice Munro
Perdoe-me tanto laquê - Juliana Gervason
Bing Ring - Nancy Jo Sales


PS. repararam que minha lista mostra que leio basicamente mulheres novas e vivas? Não tinha percebido esse “padrão” antes de criar a lista aqui. Pensando em mudar isso, já estou lendo contos da Flannery O'Connor. Outras sugestões?

22 de janeiro de 2014

Da quantidade de livros que temos em casa

 
Escrivaninha da Susan Sontag, com pilhas e pilhas de livros nas estantes (daqui).

No fim de 2013, me peguei pensando sobre a quantidade de livros não lidos que tenho em minha estante. Os dois metros e meio (medi mesmo, veja aqui) me assustam - como eles ficam espalhados pela estante, em diferentes cubículos, não tinha ideia do (grande) volume total deles.

Depois de passado o susto, não consegui decidir se aquela quantidade era boa ou ruim. Amo livros, então ter muitos é algo bom. Ter possibilidades e liberdade para escolher as próximas leituras também vai para o lado de prós da lista.

Ainda assim, acho que nunca tive tantos livros não lidos em casa antes. Sempre acreditei que o verbo principal que devemos usar com livros é “ler”, não “comprar”, “ter” ou “acumular”. A função do objeto livro só se cumpre com sua leitura e eu tenho cerca de 100 deles esperando que eu faça isso.

Um pouco opressor, não?

Na mesma semana, em uma conversa com um amigo que já trabalhou em uma livraria, fiquei sabendo da existência de pessoas que compram livros para enfeitar paredes e estantes, escolhendo os volumes pelas lombadas. Minha primeira reação foi: “mas e quando chega alguma visita e pergunta sobre os livros? eles assumem que nunca leram?”. Em seguida, penso que é possível que ninguém se importe com isso (um pouco de preconceito, eu sei, mas ainda me assusto com o fato de que as pessoas comprariam livros - encadernados de papel com informações dentro - apenas para enfeite).

Só depois do susto inicial me lembrei da existência daqueles livros grandes e bonitos que as pessoas compram para as mesinhas da sala ou dos políticos que alugam livros em capa dura para posicionar estrategicamente pelo cômodo em que dão entrevistas importantes, para dar mais credibilidade (também é verdade, veja).

Todos eles me assustam. Gosto de comprar livros e gosto de capas bonitas, mas acho que nada importa se eles não foram lidos. E muitos dos meus não foram e alguns estão ali me esperando desde 2009.

Achei que isso merecia uma listinha de metas:

1. Comprar menos livros. Sei que não vou ficar sem comprar livros (acredite, já tentei), mas acho que menos pode ser possível.  

2. Ler os livros que me esperam, e tentar começar pelos que estão por ali há mais tempo.

3. Me permitir o desapego. Se não li até agora, começar a ler e realmente não gostar, está na hora do livro ter um dono mais atencioso que eu.  

4. O mesmo vale para a pilha de livros em alemão, que comprei com a intenção de exercitar a língua e que estão encalhados desde 2012 mais por preguiça que por qualquer outra coisa.

Fiz um vídeo aqui, em que comento sobre 12 livros que quero ler esse ano. Nele, mostro alguns que estão fazendo aniversários demais na estante sem serem lidos.

E que 2014 seja conhecido como o ano de desencalhe de leituras.

20 de agosto de 2013

Bibliófilos e suas bibliotecas

Essa semana, publiquei no Youtube um vídeo com comentários sobre o livro "Fantasmas na Biblioteca", de Jacques Bonnet. Bonnet é francês, editor, tradutor e... bibliófilo - um colecionador de livros. Na obra, o autor fala sobre como é viver entre (muitos) livros, como é o processo de escolha, organização e leitura das diferentes obras que tem em casa.



Depois disso, fiquei pensando... como são as bibliotecas dos bibliófilos? Afinal, se já temos problemas nas nossas casas com nossos livros, imagina eles (com seus 20, 30, 40 mil ou mais). Abaixo, algumas imagens:

Fonte da imagem
O próprio Jacques Bonnet, que comenta no livro que precisou espalhar seus cerca de 20 mil volumes em diversos cômodos da casa. 


Fonte da imagem
Alberto Manguel, que também tem vários livros publicados sobre o tema (como o "Uma noite na biblioteca" ou "Uma história da leitura").

Fonte da imagem
José Mindlin, um bibliófilo brasileiro, chegou a ter 45 mil volumes na sua biblioteca. Faleceu em 2010.

Fonte da imagem 

Umberto Eco é um dos autores que defendem que as grandes bibliotecas não são lidas por completo - e nem são feitas com esse objetivo. A intenção é ter tudo por perto, disponível, para quando quiser ler.

18 de agosto de 2013

Mensagem - Fernando Pessoa



Fernando Pessoa é um dos grandes nomes da literatura. Sua inventividade e técnica poética fazem dele um dos poetas mais conhecidos e admirados da língua portuguesa. É um dos preferidos de muita gente, eu inclusive. E tenho um atração especial por Mensagem (1934), o único livro em português que ele publicou em vida (e que ficou em 2º lugar(‼) no prêmio Antero Quental daquele ano (Romaria, de Vasco Reis, foi o primeiro)).

Fernando Pessoa quase sempre nos oferece múltiplas camadas de leitura e quanto mais se sabe da tradição portuguesa e do contexto da época em que foi escrito (entre 1914-1934), mais deliciosa se torna essa obra, riquíssima de recursos poéticos. Então vou começar mostrando um pouco da estrutura da obra, muito ligada aos símbolos de Portugal, e comentando brevemente as chamadas Conferências Democrática do Cassino, ocorridas em 1870.




PARTE
SUBDIVISÃO 
POEMAS
1. Brasão


















I. Os Campos 

Os castelos 
O das quinas 
II. Os Castelos 







1) Ulisses 
2) Viriato
3) O conde D. Henrique
4) D. Tareja
5) D. Afonso Henriques 
6) D. Dinis 
7 a) D. João, o primeiro
7 b) D. Filipa de Lencastre
III. As Quinas 




D. Duarte, rei de Portugal
D. Fernando, infante de Portugal
D. Pedro, regente de Portugal
D. João, infante de Portugal
D. Sebastião, rei de Portugal
IV. A Coroa
Nunálvares Pereira 

V. O Timbre


A cabeça do grifo / O infante D. Henrique
Uma asa do grifo / D. João, o segundo
A outra asa do grifo / Afonso de Albuquerque
2. Mar Português























O infante
Horizonte
Padrão
O monstrengo
Epitáfio de Bartolomeu Dias 
Os colombos 
Ocidente
Fernão de Magalhães 
Ascensão de Vasco da Gama
Mar Português
A última nau 
Prece
3. O Encoberto












I. Os Símbolos 





D. Sebastião
O Quinto Império
O Desejado
As Ilhas Afortunadas 
O Encoberto
II. Os Avisos 


O Bandarra
Antônio Vieira
Terceiro
III. Os Tempos 





Noite
Tormenta
Calma
Antemanhã 
Nevoeiro


Como mostram os títulos das partes, a estrutura da obra reflete os símbolos e as personagens (históricas e mitológicas) de Portugal numa sequência cronológica, tendo em Os Lusíadas uma obra com a qual evidentemente dialoga.

Das citadas Conferências Democrática do Cassino saiu o diagnóstico que Portugal se tornara um país decadente. Potência mundial dos séculos XIV a XVI, o país perdeu sua importância e ficou relegado à margem da ordem mundial. Intelectuais e escritores portugueses conviviam com a necessidade de entender as razões de o porquê dessa decadência e do que fazer para novamente ser protagonista da história.

Mensagem é a resposta de Pessoa, que, numa possível leitura, nos indica que Portugal não tinha que lamentar as perdas materiais que sofreu (como a independência das colônias conquistadas), mas a perda da sede, da vontade, do espírito que havia levado o país à vanguarda marítima, comercial e científica de outrora.

E Fernando Pessoa faz isso mostrando como o povo português teve muitos feitos e heróis, realizando aventuras de proporções épicas tendo como um dos pontos centrais o sonho. E que é o declínio desse sonho que deixou Portugal imerso no grande nevoeiro em que se encontrava no início do século XX.

O início da obra é por si só magistral, mostrando de cara toda a força da imaginação e da construção de imagens do poeta. Com versos que fazem parte de nossa cultura e imaginário, Pessoa visualiza a Europa como um corpo feminino. Reclinada sobre um de seus cotovelos (a Inglaterra) tem seu outro recuado, a Itália – o rosto, voltado para vastidão do Oceano à frente, é Portugal.

I. OS CAMPOS

PRIMEIRO / OS CASTELOS

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.


SEGUNDO / O DAS QUINAS

Os Deuses vendem quando dão.
Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

Os Lusíadas já traziam Portugal como “cabeça da Europa toda” (e essa intertextualidade com Camões, de suporte e superação, está sempre presente). Mas lá era uma vontade divina, de que os portugueses vencessem os mouros (a conquista de cada castelo é representado no escudo português), aqui uma condição e uma missão mais abrangente, que aguarda o que virá, mas também vê além, quase que a guiar e liderar toda a Europa.

Na simbologia heráldica, as quinas representam as chagas de Cristo e o dinheiro com que foi vendido por Judas, evidenciando a missão portuguesa de lutar contra os infiéis. No segundo poema, as quinas podem ser entendidas como o sofrimento, o preço pago pela nação portuguesa para construir sua história. Nele estão contidas todos os argumentos da obra, da mensagem que ele quer deixar aos portugueses: a glória futura, a desgraça como sinal de eleição, a necessidade de se libertar da materialidade e a identificação com Cristo (definido como tal pelo sacrifício).

Assim se dividem os poemas dessa primeira parte, remetendo ao brasão de Portugal. Trata do nascimento e da fundação da nação, com as grandes figuras da história de Portugal, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalenses, passando por sua esposa, Dona Tareja, e seu filho, primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques, até o infante Dom Henrique (1394-1460), fundador da Escola de Sagres e grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e Afonso de Albuquerque (1462-1515), dominador português do Oriente. Incluindo Ulisses que, na tradição mitológica presente também nOs Lusíadas, seria um dos fundadores de Lisboa


Mar português, a segunda parte, apresentadas as grandes navegações portuguesas, que levou o país a seu lugar de destaque. Padrão evidencia a amplitude dessa missão e aventura portuguesa:

III. PADRÃO

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.


O poema mais conhecido de toda a obra, Mar Português, também remete aOs Lusíadas, no episódio da “despedida das naus em Belém”. São as lágrimas de Portugal, o salgado do mar. Aqui já se vê o eco do "compra-se a glória com desgraça". A referência final ao Cabo Bojador, na costa do Marrocos, traz o mito existência de monstros marinhos, responsáveis pelo desaparecimento de inúmeras embarcações que tentaram ultrapassá-lo. O feito de superá-lo, como não podia deixar de ser, foi de um português, Gil Eanes em 1434. O fechamento é de mais uma belíssima imagem e sonoridade, com sua forte mensagem – embora tantos perigos, o reflexo do céu está no mar. Nisso, ao contrário dOs Lusíadas, as navegações não são um fim em si mesmo, não são pela sua materialidade, mas pelo seu caráter espiritual ("em naus que são construídas daquilo que os sonhos são feitos") que podem levar Portugal ao seu lugar de destaque.

X. MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Na terceira parte, o Encoberto, a figura mística de Dom Sebastião e as inúmeras profecias ligadas a ele. Dom Sebastião, rei de Portugal, teve a frota dizimada em ataque aos mouros em 1578. Entre outros, Bandarra e Antônio Vieira preveem o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre o mundo. A visão messiânica de São Sebastião carrega tudo que o jovem rei representou: o sonho de grandeza, da expansão do cristianismo e das conquistas ultramarinas. Os poemas parecem justamente trazer o clima de magia em torno de presságios e adivinhações, daí o tom enigmático e as indagações do que está por vir. Quando está por vir? O último verso do último poema responde: É a hora!


QUINTO / NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer-
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,

Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

(Para quem quiser mais, José Carrero faz - com muito mais propriedade - uma análise extensa, e por vezes diferente, de Mensagem nesse link

9 de agosto de 2013

Sentimento do Mundo - Carlos Drummond de Andrade


“Tenho apenas duas mãos/e o sentimento do mundo”. Essa passagem antológica abre o terceiro livro de Drummond, Sentimento do Mundo, lançado em 1940. Imerso em sua época, as ditaduras, o nazismo e a segunda guerra fazem parte do eixo temático do livro, que oscila entre cidade e interior, atualidade e memórias e o indivíduo e o mundo – tema este presente desde o primeiro livro de Drummond, com sua também abertura antológica, o Poema de Sete Faces.

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

De certo modo, a divisão de estrofes de Drummond sempre foi a chave para ler seus poemas. Os versos livres, as rimas ausentes e a linguagem coloquial trazem consigo profundo lirismo e alguma ironia, quase sempre estabelecendo a relação do eu/mundo interior com mundo exterior, carregando todos os seus fantasmas. Nesse sentido, o poema mais conhecido talvez seja a Confidênciado Itabirano. E parar lutar contra o que hoje é fotografia, mas ainda dói, vem a busca de um vínculo com o que está fora do eu. Em Poema da Necessidade isso é feito pela repetição do “é preciso”, mas concluindo pelo fim do mundo. Entre todas as possibilidades que a linguagem permite, criar mil mundos novos, o desfecho do poeta é o fim de tudo, de tudo que aprisiona e oprime (embora, de certa forma, anuncie um mundo novo em O Operário do Mar). As preocupações, inquietações e imposições da vida moderna – repetidas constantemente, não poderiam mesmo ter outro fim.

Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
É preciso comprar um rádio,
É preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
É preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.

Assim, vemos o homem sempre carregando seu passado: a família, a cidade natal, a formação moral, o medo e a angústia, sempre o medo e a angústia. Em Sentimento do Mundo isso se depara com a política ditatorial, a luta pelo poder, a ganância, a corrupção, a diferença social, a imposição comportamental e a violência. Inocentes do Leblon não poderia ser mais atual com seu retrato dos que querem ignorar. Mas se a poesia cintila com a possibilidade de servir como meio de libertação, inclusive com função de participação social, não é otimista o desfecho que ela traz. Reviver os fantasmas e raciocinar a partir do medo e do autoritarismo nos faz nos compreendermos melhor, mas não resolve o problema. É negro o amanhecer.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer.

Esse amanhecer
mais noite que a noite.