Angélica Freitas já chegou ao público e à academia – feito
raríssimo para poetas contemporâneos, especialmente tão novos quanto ela, que
está apenas em seu segundo livro de poesia.
Rilke shake, sua obra de estreia, mostra, desde o título,
uma temática típica de nossos tempos, o diálogo entre o erudito e o popular, a
tradição e sua transformação – a mistura milk shake que fazemos da cultura
popular (e de nós próprios) com os grandes nomes, como o de Rainer Maria Rilke.
Angélica ignora a métrica, seu ritmo é “de ouvido” e podia
insistir mais nas rimas soantes despadronizadas (que faz muito bem, como em “Entro
na livraria do bobo” e “Rilke shake”), mas a força de seus temas, as imagens
que constrói e o uso narrativo que faz da poesia superam em muito eventuais
defeitos, naturais de uma obra de estreia.
ENTRO NA livraria do bobo
não tenho dinheiro
e tampouco tenho talento para o crime.
desfilam ante meus olhos
títulos maravilhosos
moribundos de tanto estar
nas prateleiras.
roube-nos, dizem eles,
não aguentamos mais ficar aqui
na livraria dos bobos.
quem acreditaria
nesta versão dos fatos?
ajudem-me, maragatos
nesta hora afanérrima
de uma libertadora paupérrima
de livros.
retumba meu coração,
retumba
mais que a bateria do salgueiro
treme o corpo por inteiro
e as mãos já suam em bicas.
ganho a rua, as mãos vazias
e os livros gritam: maricas.
O erudito e o popular está presente em vários momentos do
livro, no léxico e em referências explícitas (Rilke, Gertrude Stein, Ezra Pound…)
e implícitas (como, em destaque no poema anterior, a lembrança do “retesa os músculos,
retesa” do belíssimo soneto de Cruz e Souza)
mescladas com objetos (como a bateria do salgueiro) e vocábulos populares. Outra
marca é a mescla de idiomas, também recorrente entre as novas gerações de
poetas, talvez mais acostumados em se expressar em diversos idiomas. Tudo bem
que seu “plano poético” nem sempre funcione, soando às vezes é óbvio, sacal e não
é mais que pastiche, mas não se pode negar que Angélica Freitas tem objetivos
ao escrever e trabalha sua escrita, com resultados que justificam sua posição
como uma das grandes promessas de uma nova geração de poetas. O que pode ser
percebido no poema título do livro e, com mais força ainda, em sua segunda obra
Um útero é do tamanho de um punho (comentado nesse vídeo aqui).
Rilke shake
salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga
nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe
Com versos curtos, repletos de ironias, humor (“entre os
ringues polifônicos e a queda da marquise/ morreu ontem executada a poor elise”),
traços de pertencimento e ruptura (reflexo, talvez, do eterno problema presente
de identidade) e a questão de gênero que seria tão bem explorada na próxima
obra, que tem seu ápice nas imagens de dois poemas seguidos “sashimi” e “sereia
a sério”. No primeiro, a tarefa, "ocupação tão masculina/sushiman" de
"retalhar/ melhor o peixe" será contraposta, do outro lado da lâmina,
pela sereia símbolo de mulher que “"pisa em facas quando usa os pés":
Sereia a sério
o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado
a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia
não quero contar a história
depois de andersen & co
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa
em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée
são duros os procedimentos
bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés
e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse
em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão
Se poesia é para, antes, falar com e alegrar os corações
humanos, Angélica Freitas nos oferece, já de cara, uma bela conversa e deleite.
NÃO adianta
chegar na porta
e ordenar
abra
öffnen
open
é preciso
girar a chave
e mais
é preciso saber
qual chave
ou então
esbarrar na dureza
de certos materiais
mogno pinho
cedro ou lâmina
de qualquer madeira
conhecer a chave
ou intuir para que
lado gira
tantos têm
tão pouca paciência
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